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Editoriais sobre as condições objetivas e subjetivas da situação política internacional e sua influência no Brasil

ANTIPETISMO - versão brasileira do fascismo: 1. Origens teóricas do fascismo

ANTIPETISMO - versão brasileira do fascismo: 1. Origens teóricas do fascismo











filme A Onda (Die Welle) retrata um experimento social, onde um professor demonstra como a estética nazifascista pode ser sedutora para os jovens.  Bannon, o estrategista político de Donald Trump, estudou detalhadamente o imaginário social e conseguiu criar uma máquina de produzir resultados eleitorais a partir do uso  de símbolos de força, que são semelhantes aos símbolos associados ao nazifascismo, reeditando ideias correntes nos tempos do macarthismo nos Estados Unidos. América Grande de novo, lema de campanha de Trump, é um exemplo. No Brasil, a estética nazifascista é usada por Bolsonaro para animar sua base social.
Contudo, o que é realmente o fascismo? Qual a relação do nazismo e do fascismo com o macarthismo? Qual a relação do fascismo com a igreja católica?
Beberemos em fontes do passado e na fonte da experiência acumulada da classe operária organizada para tentar entender esse problema tão atual em três artigos que começam com a análise do discurso corporativista.

 Rerum Novarum - a sociedade como um corpo

A ideia de que 'A sociedade é um corpo' é um ancestral evolutivo comum de várias doutrinas totalitárias. O corpo humano possui muitos órgãos e sistemas indispensáveis para seu funcionamento, sob o comando do cérebro. A comparação da sociedade com um corpo abstrai as contradições no seu interior e conclui que todas as partes da sociedade deveriam ser harmônicas entre si com um comando central. Essas noções, presentes no imaginário fascista, que nega os conflitos de classe, encontram sua primeira grande sistematização pela Igreja Católica em sua Doutrina Social.




O Vaticano mantém em sua página, uma tradução para o português da Encíclica Papal do Papa Leão XIII chamada Rerum Novarum (Acerca  das Coisas Novas), cujo subtitulo é: Sobre a  condição dos operários. Essa encíclica é considerada a origem da Doutrina Social da Igreja. Segundo a página da CNBB, a doutrina social da igreja é compostas por diversos textos: A Doutrina Social da Igreja, convencionada como tal a partir da Rerum Novarum, é fruto dessa construção histórico-teológica que se atualiza sempre. Muitos documentos pontifícios deram sequência ao tratamento de questões sociais, tais como: Encíclica Quadragésimo Anno de Pio XI (1931); Mensagens de Rádio de Pio XII (1941 e 1951); Encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), de João XXIII; Encíclica Populorum Progressio (1967) e da Carta Apostólica Octogesima Adveniens (1971), de Paulo VI; Encíclicas Laborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e Centesimus Annus (1991), de João Paulo II; Encíclica Caritas in Veritate (2009), de Bento XVI; Exortação Apostólica Evangelli Gaudium (2014) e Encíclica Laudato Si (2015), do Papa Francisco.
A mesma página não aponta que essa encíclica tenha sido revogada, mas, ao contrário, ela é reafirmada. Sua edição data 15 de maio de 1891. O Papa Leão XIII começa estabelecendo a motivação da carta: É por isto que, Veneráveis Irmãos, o que em outras ocasiões temos feito, para bem da Igreja e da salvação comum dos homens, em Nossas Encíclicas sobre a soberania política, a liberdade humana, a constituição cristã dos Estados [*] e outros assuntos análogos, refutando, segundo Nos pareceu oportuno, as opiniões erróneas e falazes, o julgamos dever repetir hoje e pelos mesmos motivos, falando-vos da Condição dos OperáriosA igreja católica, no fim do século XIX, está preocupada com a vida dos operários. O Papa, então, constata: estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário, com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida. E o Papa denuncia: A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo isto deve acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e de opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão dos proletários. O tom de denúncia às condições de vida dos trabalhadores, imposta pelos homens ávidos de ganância, é simpático aos olhos dos trabalhadores. Contudo, até esse trecho, o Santo Padre não propôs nenhuma solução concreta.

 Da crítica à usura à crítica à solução socialista

Na sequência, o Papa comenta acerca da solução socialista: Os Socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve voltar aos Municípios ou ao Estado. Mediante essa transladação das propriedades e essa igual repartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam aos cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática.  Qual prejuízo o operário teria caso aderisse à solução socialista? O Papa explica: Assim, esta conversão da propriedade particular em propriedade coletiva, tão preconizada pelo socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade de engrandecerem o seu património e melhorarem a sua situação. Entre 1891 e 2020, vimos duas grandes guerras mundiais, centenas de guerras locais, pandemias, ataques a direitos trabalhistas, mas ascensão social de operários no capitalismo ninguém viu, senão como contraste com o crescente número de desempregados.  Os dados mostram a degradação social no capitalismo. Vimos também experiências de economias planificadas, cujo balanço nós começamos aqui e esse balanço passa longe de uma classe operária pauperizada.

Nas linhas seguintes, o Papa sai em defesa da propriedade privada, como se nessa época do capitalismo estivéssemos falando de uma pequena propriedade e não das grandes indústrias e do movimento em direção ao monopólio relatado por Lenin, 25 anos depois, em Imperialismo - fase superior do capitalismo e repercutido também por nós aqui.



Leão XIII diz defender a família, mas o fundo desta defesa é o direito a herança 

A natureza não impõe somente ao pai de família o dever sagrado de alimentar e sustentar seus filhos; vai mais longe. Como os filhos refletem a fisionomia de seu pai e são uma espécie de prolongamento da sua pessoa, a natureza inspira-lhe o cuidado do seu futuro e a criação dum património que os ajude a defender-se, na perigosa jornada da vida, contra todas as surpresas da má fortuna. Mas, esse patrimônio poderá ele criá-lo sem a aquisição e a posse de bens permanentes e produtivos que possam transmitir-lhes por via de herança? Certamente, o dono dos meios de produção concede a seus filhos o direito de herança, mas os filhos dos trabalhadores nada herdam, porque nada possuem.
O Papa defende a propriedade como um direito natural: Por tudo o que Nós acabamos de dizer, se compreende que a teoria socialista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles membros a que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado e perturbando a tranquilidade pública. Um direito natural, que é bem assemelhado ao direito divino dos reis, na Idade Média. Uma profunda soberba: É com toda a confiança que Nós abordamos este assunto, e em toda a plenitude do Nosso direito; porque a questão de que se trata é de tal natureza, que, se não apelamos para a religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução eficaz.  A igreja vê o seu papel como uma instituição bonapartista, acima das classes sociais e geradora de consensos: a Igreja, que, por uma multidão de instituições eminentemente benéficas, tende a melhorar a sorte das classes pobres; a Igreja, que quer e deseja ardentemente que todas as classes empreguem em comum as suas luzes e as suas forças para dar à questão operária a melhor solução possível; a Igreja, enfim, que julga que as leis e a autoridade pública devem levar a esta solução, sem dúvida com medida e com prudência, a sua parte do consenso.
O consenso como forma de solução de conflitos de classe, como pode ser visto, não é nada novo. Novas roupagens, maquiagens, embelezamentos teóricos podem ser visto em tempos mais recentes como nos fóruns sociais mundiais. A Encíclica Rerum Novarum parece ser a base teórica, ou pelo menos, uma forte influência para os movimentos altermundialistas (Revista A Verdade, setembro/ 2003, artigo de Daniel Gluckstein Alterglobalização - uma inovação teórica do secretariado unificado).  No Fórum Social Mundial, reuniam-se as organizações da dita 'sociedade civil' como ONGs beneficentes católicas, sindicatos operários, partidos de esquerda, tudo isso sob a tutela do Banco Mundial, que em sua revista trimestral Finance and Development, dezembro/2000, saudava o FSM de Porto Alegre nos seguintes termos: As disposições que buscam melhorar o funcionamento das instituições púbicas e sociais favorecem ao mesmo tempo o crescimento e a equidade,  na medida em que reduzem as barreiras administrativas e sociais à atividade econômica e à mobilidade social.  A participação das comunidades na definição das prioridades orçamentárias - que tem um exemplo em Porto Alegre, Brasil - pode ajudar a focalizar a ação pública nas prioridades sociais. Vale lembrar que a estrutura da democracia participativa foi fundamental para a legitimação do regime fiscal brasileiro; pois, em lugar de questionar leis, como a Lei da Responsabilidade Fiscal, que impediam o investimento governamental em serviços públicos,  garantindo o serviço da dívida e os contratos com os banqueiros, as organizações dos trabalhadores passavam a  se digladiar pelo orçamento amputado por  interesse do mercado financeiro, com base num consenso possível dentro dos marcos legais vigentes e antioperários.  Recentemente,  Klaus Schwab, CEO do Fórum de Davos, ressuscitou essa prática porém, agora, no próprio Fórum Econômico que, em sua edição de 2021, terá o  seguinte objetivo: É necessário haver um novo contrato social focado na dignidade humana e na justiça social, de forma que o progresso da sociedade não fique para trás do desenvolvimento econômico. Segundo Schwab, é um novo momento para o Fórum Econômico; agora, a elite financeira percebe a necessidade de discutir temas ditos sociais.

A igreja legitima a opressão de classe como natural e, assim, define o conceito de ‘sociedade civil’

primeiro princípio a pôr em evidência é que o homem deve aceitar com paciência a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os Socialistas; mas contra a natureza todos os esforços são vãos.
Na época do Papa Leão XIII, a humanidade não estava mais submetida às intempéries climáticas que obrigavam migrações a cada nova estação, em busca de terras mais férteis. O caos de eras anteriores fôra abolido pelo desenvolvimento da agricultura. Viagens transatlânticas não eram novidade e a máquina a vapor, há muito, dominava a indústria. A civilização estava plenamente estabelecida, então, não é verdade que o homem precisava submeter-se à natureza. Mas, para o Papa, Foi ela, realmente, que estabeleceu entre os homens diferenças tão multíplices como profundas; diferenças de inteligência, de talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias, de onde nasce espontaneamente a desigualdade das condições. Esta desigualdade, por outro lado, reverte em proveito de todos, tanto da sociedade como dos indivíduos; porque a vida social requer um organismo muito variado e funções muito diversas, e o que leva precisamente os homens a partilharem estas funções é, principalmente, a diferença das suas respectivas condições.      
Seria mais difícil ao atual Papa pedir paciência a uma operária confrontada com o atual preço da cesta básica.  
Nessa encíclica, reiteradamente, vemos a expressão ‘sociedade civil’. Este conceito esconde a natureza de classes da sociedade capitalista e é usado até os dias de hoje como apagamento das contradições que existem na sociedade. Não é coincidência o seu uso nos chamados Fóruns Sociais Mundiais, que tiveram lugar em Porto Alegre e eram financiados em particular pelo mega- especulador George Soros, sendo apresentados como a contraparte social dos Fóruns Econômicos Mundiais, realizados na cidade de Davos.
As 'diferenças sociais' são louvadas na Rerum Novarum como determinações da própria natureza, ou seja, a classe trabalhadora deveria aceitar de bom grado sua condição. Se o patrão é patrão é porque a natureza assim o fez, ou seja, porque Deus assim o quer. Esta noção está presente na ideia de uma sociedade superior ariana que aparece no Nazismo, ou do direito divino da terra presente no Sionismo (movimento político que reivindicava uma pátria para o povo judeu, usando argumentos religiosos). Os seguidores da atual extrema direita brasileira também costumam falar que o PT foi quem introduziu a divisão no seio da sociedade brasileira. Para esses, bom era o tempo em que o povo trabalhador não reclamava seus direitos, mas apenas esperava pela piedade patronal.


A origem da expressão ‘corporativismo’

Segundo o Papa Leão XIIIO erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado. A natureza também não deu asas ao homem, no entanto a humanidade voa em aeronaves por ela construídas. Voltemos ao Papa: Isto é uma aberração tal, que é necessário colocar a verdade numa doutrina contrariamente oposta, porque, assim como no corpo humano os membros, apesar da sua diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo que formam um todo exatamente proporcionado e que se poderá chamar simétrico, assim também, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital. Uma parte da afirmação papal é verdadeira, não existe capital sem trabalho, sem acumulação privada sobre as horas de trabalho alheio. Mas trabalho humano existe desde que os seres humanos começaram a usar horas de seus dias na luta pela sobrevivência, muito antes de sequer existirem moedas.

O palavreado piedoso em defesa da harmonia de um corpo pode até ser cativante; porém, na realidade, os trabalhadores são levados a disputar vagas de emprego a tapa, como mostra essa matéria em um importante jornal empresarial, onde o discurso piedoso dá lugar ao falso moralismo, criticando a postura de trabalhadores que tentam esconder resultados desabonadores em seus históricos trabalhistas, como se a disputa feroz em que eles estão envolvidos não fosse pela própria sobrevivência.  Aqui, sim, vale a comparação com uma lei natural, a lei da seleção natural, onde quem vence sobrevive para manter os seus herdeiros genéticos. Não existe concórdia no mercado capitalista: ou os trabalhadores concorrem entre si pelas vagas de emprego, ou unem-se contra o patrão.

A concórdia traz consigo a ordem e a beleza; ao contrário, dum conflito perpétuo só podem resultar confusão e lutas selvagens. Ora, para dirimir este conflito e cortar o mal na sua raiz, as Instituições possuem uma virtude admirável e múltipla. A concórdia entre as classes sociais só pode ocorrer caso o trabalhador aceite a discórdia intraclasse; ou seja, caso o trabalhador não veja outro trabalhador como seu semelhante nem com ele se confraternize na dor, nem combata o patrão que oprime e lucra com a desgraça de ambos.  A identificação com o opressor e a culpabilização das vítimas é o centro de todas as ideologias que visam a continuidade do sistema capitalista. 

Como não pode negar a miséria dos operários, a Rerum Novarum estabelece os deveres morais do patrão

Mas, entre os deveres principais do patrão, é necessário colocar, em primeiro lugar, o de dar a cada um o salário que convém. 


Quem define o justo salário

Certamente, para fixar a justa medida do salário, há numerosos pontos de vista a considerar. Duma maneira geral, recordem-se o rico e o patrão de que explorar a pobreza e a miséria e especular com a indigência, são coisas igualmente reprovadas pelas leis divinas e humanas; que cometeria um crime de clamar vingança ao céu quem defraudasse a qualquer no preço dos seus labores.
Aparentemente, a ‘vingança celeste’ ou não está funcionando, ou o patronato está agindo conforme as leis ‘divinas’. Certamente, a hipocrisia reina nesse parágrafo ao não dizer qual seria o justo salário, ou como estabelecê-lo. Um esquecimento, uma pequena falha de memória para um papa, mas certamente uma questão de vida ou morte para um trabalhador. Ainda sobre o salário: Referimo-nos à fixação do salário. Uma vez livremente aceite o salário por uma e outra parte, assim se raciocina, o patrão cumpre todos os seus compromissos desde que o pague e não é obrigado a mais nada. ‘Livremente aceite o salário’ -  nenhum trabalhador aceita um salário livremente, pois todos estão submetidos às leis do mercado capitalista. Como vimos na matéria da Infomoney.

O DIEESE todos os meses analisa o salário mínimo nominal e o salário mínimo necessário (V. aqui). O salário mínimo, como estabelecido em lei, deve ser suficiente para atender a todas as demandas: vestuário, alimentação, higiene, educação, saúde e etc.  A tabela abaixo mostra o valor do salário mínimo necessário para atender a todas essas demandas previstas em lei. A pergunta que fica é: onde está a prometida justiça divina contra os patrões?
Fonte: Dieese


Reprimir os que se insurgem contra a ‘sagrada’ propriedade

A encíclica papal é autoexplicativa: Mas, é conveniente descer expressamente a algumas particularidades. É um dever principalíssimo dos governos o assegurar a propriedade particular por meio de leis sábias. Hoje, especialmente, no meio de tamanho ardor de cobiças desenfreadas, é preciso que o povo se conserve no seu dever; porque, se a justiça lhe concede o direito de empregar os meios de melhorar a sua sorte, nem a justiça nem o bem público consentem que danifiquem alguém na sua fazenda nem que se invadam os direitos alheios sob pretexto de  igualdade. Por certo que a maior parte dos operários quereriam melhorar de condição por meios honestos sem prejudicar a ninguém; todavia, não poucos há os que, embebidos de máximas falsas e desejosos de novidade, procuram a todo o custo excitar e impelir os outros a violências. Intervenha, portanto, a autoridade do Estado, e, reprimindo os agitadores, preserve os bons operários do perigo da sedução e os legítimos patrões, de serem despojados do que é seu. Contudo. o então sucessor de Pedro, vai ainda mais longe e fala das greves: O trabalho muito prolongado e pesado e uma retribuição mesquinha dão, não poucas vezes, aos operários ocasião de greves. É preciso que o Estado ponha cobro a esta desordem grave e frequente, porque estas greves causam danos não só aos patrões e aos mesmos operários, mas também ao comércio e aos interesses comuns; e, em razão das violências e tumultos, a que de ordinário dão ocasião, põem muitas vezes em risco a tranquilidade pública. O remédio, portanto, nesta parte, mais eficaz e salutar é prevenir o mal com a autoridade das leis, e impedir a explosão, removendo a tempo as causas de que se prevê que hão de nascer os conflitos entre os operários e os patrões.
A piedade da igreja não é estendida àqueles que fazem greve e que isso fique bem entendido; não há nível de exploração suficiente, para Leão XIII, que legitime uma greve. O aviso é claro aos grevistas e contra estes: toda  perseguição é legitima, segundo as eternas leis da igreja católica. Repetimos que a página da CNBB não aponta que essa encíclica tenha sido revogada, na verdade sua revogação colocaria em cheque outro dogma da igreja, a infalibilidade papal.

Apaziguar os conflitos de classe exige submissão dos operários e caridade dos capitalistas

O operário que receber um salário suficiente para ocorrer com desafogo às suas necessidades e às da sua família; se for prudente, seguirá o conselho que parece dar-lhe a própria natureza: aplicar-se-á a ser parcimonioso e agirá de forma que, com prudentes economias, vá juntando um pequeno pecúlio, que lhe permita chegar um dia a adquirir um modesto património. 

Um estudo da Ambima (Associação Brasileira de Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais) diz que 56% dos brasileiros não mantêm nenhuma poupança para sua velhice. É fácil entender o motivo: com o salário mínimo depreciado em quatro vezes frente ao valor necessário, poucos trabalhadores conseguem poupar dinheiro. Como poupar dinheiro ganhando um salário ultradesvalorizado? Chega a ser revoltante! Palavras piedosas, enquanto 1% da população mundial detém a mesma riqueza dos outros 99%. Estudos como o de Branko Milanovic atestam a superconcentração da riqueza nas mãos de pouquíssimos especuladores parasitas, que não investem em nada produtivo para a humanidade.  Para o Papa Leão XIII, a solução definitiva é a caridade; este é o elemento comum em, praticamente, todas as doutrinas totalitárias, pois coloca o trabalhador em posição de inferioridade e o patrão como benevolente.

Estado Laico

Ora, que parte de ação e de remédio temos nós o direito de esperar do Estado? Diremos, primeiro, que por Estado entendemos aqui, não tal governo estabelecido entre tal povo em particular, mas todo o governo que corresponde aos preceitos da razão natural e dos ensinamentos divinos, ensinamentos que Nós todos expusemos, especialmente na Nossa Carta Encíclica sobre a constituição cristã das sociedades
Um Estado que corresponde aos ensinamentos da razão natural e dos ensinamentos divinos é certamente um Estado que não é laico e, por ser portador de princípios divinos, inquestionável.
O problema é que na vida real do trabalhador, o Estado burguês é dominado pelo poder econômico do patrão. Então, como esperar que um Estado que é constituído sob o poder do patrão, possa arbitrar uma disputa entre patrão e trabalhador?
Aqui se encontra um ponto de contato, ainda que tênue, com o sionismo, que se considera único herdeiro por direito divino da região do Monte Sion, que fica nas cercanias da cidade velha de Jerusalém O nome sionismo deriva de Sion, um importante monte nas cercanias da cidade velha de Jerusalém, e representa o desejo milenar dos judeus de, após o exílio forçado, retornar à terra dos seus ancestrais bíblicos. (Aqui, página do CONIB).
Longe de nos alinharmos com a negação da autodeterminação do povo judeu, o fato é que a unidade sionista de Israel, foi constituída sob argumentos religiosos.


Princípios de pureza moral e obscurantismo

Ora, o que torna uma nação próspera são os costumes puros, as famílias fundadas sobre bases de ordem e de moralidade, a prática e o respeito da justiça, uma imposição moderada e uma repartição equitativa dos encargos públicos, o progresso da indústria e do comércio, uma agricultura florescente e outros elementos, se os há, do mesmo género: todas as coisas que se não podem aperfeiçoar, sem fazer subir outro tanto a vida e a felicidade dos cidadãos.  
A citação é bem explícita: o fascismo, sempre que aparece, vem reivindicando pureza sob algum aspecto e sob esse aspecto de pureza a sociedade deveria ser organizada e disciplinada duramente e o argumento que justifica tal critério é sempre místico.
O nazismo reivindicava a pureza da raça ariana, uma sociedade corporativa e pura. No fascismo, esses elementos também estão presentes: O corporativismo fascista apresentava-se, pois, como resultante da conciliação do corporativismo com a industrialização, onde a unificação e a organização das forças produtivas deviam ser garantidas. Como escreveu o próprio Mussolinicomo instrumento que, sob a égide do Estado, torna real a disciplina integral, orgânica e unitária das forças produtivas, com vistas ao desenvolvimento da riqueza, do poder político, e do bem-estar do povo italiano.(7 INCISA, Ludovico, p. 290.) 
Disciplina rígida e que o trabalhador se sinta grato pois, como diz Chico Buarque, em Funeral de um Lavrador, a cova é a parte que lhe cabe deste latifúndio. Afinal de contas, as autoridades sabem o que é bom para o povo.
Esta ideia totalitária da sociedade, cuja ordem harmônica deve ser mantida pelos governantes não é nova e está presente desde a formação do Estado Moderno, como anunciou Hobbes em O LeviatãAlém do mais, se aquele que tentar depor o seu soberano for morto, ou por ele castigado devido a essa tentativa, será o autor do seu próprio castigo, dado que por instituição é autor de tudo quanto o seu soberano fizer.

A reedição e o reforço ideológico do totalitarismo, diante das contradições que o Estado Moderno não resolveu e aprofundou, alguns séculos depois, se encadeiam historicamente no atraso da formação dos Estados Nacionais Alemão e Italiano, num quadro em que a classe operária já tinha construído as suas próprias organizações e entrava na cena política com partidos que se colocavam o problema de governar. Para assegurar que, tanto na Alemanha, quanto na Itália, os novos Estados continuassem sendo estados capitalistas, a ideia do direito de classes oprimidas organizarem-se em sua própria defesa precisava ser eliminada, pois para o Papa Leão XIII importa à salvação comum e particular que a ordem e a paz reinem por toda a parte; que toda a economia da vida doméstica seja regulada segundo os mandamentos de Deus e os princípios da lei natural; que a religião seja honrada e observada; que se vejam florescer os costumes públicos e particulares; que a justiça seja religiosamente graduada, e que nunca uma classe possa oprimir impunemente a outra; que cresçam robustas gerações, capazes de ser o sustentáculo, e, se necessário for, o baluarte da Pátria. 

Fica claro que essa paz e harmonia não pode ser perturbada por greves ou manifestações de operários. Afinal, nada pode impedir a harmonia imposta pelas autoridades sagradas do Estado.



Harmonia da igreja com o Estado nacional italiano - celebrada no Tratado de Latrão

Foi Mussolini, à frente do Estado italiano, que concedeu à igreja católica a posse do território onde atualmente está o Estado do Vaticano. Esse acordo entre a igreja católica e o fascismo ocorreu com a intenção de barrar o crescimento do bolchevismo na Europa e quem diz isso não é um jornal operário, mas uma biografia ganhadora do Pullitzer. 








O livro conta com farta documentação sobre o Tratado de Latrão e a relação do papado com o fascismo no entre guerras. Recomendamos destacadamente a leitura.

 

O fascismo como última carta do capitalismo 

Toda a propaganda ideológica contida na Encíclica de Leão XIII consagra os argumentos e noções que vão ser usados pelo nazismo e pelo fascismo.
Porém, o contexto histórico em que o fascismo e o nazismo retomam a ideia de sociedade civil como um corpo, não é o mesmo do surgimento dessa ideia. No século XX, as forças produtivas do capitalismo não mais se desenvolviam. Estava aberto o período de guerras e revoluções, como caracterizou Lenin.

Para sobreviver a esse período de crises econômicas que se aprofundam, gerando desemprego em massa e acirrando a revolta das classes trabalhadoras, a própria classe detentora dos meios de produção precisa recuar de sua ideologia econômica, abrir mão da defesa de livre concorrência, abolida na prática pelos monopólios e chamar o Estado a intervir na economia para proteger os grandes capitalistas. Foi assim que, na década de 30 do século XX, os Estados Unidos aplicaram o New Deal; e, na Itália e na Alemanha, surgiram o fascismo e o nazismo. Porém, foi preciso manter a dominação capitalista e assegurar que a classe trabalhadora respeitasse os seus chefes e abrisse mão do combate em defesa das reformas sociais conquistadas no período anterior; abrisse mão mesmo de todas as suas conquistas, principalmente, a maior delas - a recém-formada URSS. Foi preciso doutrinar o povo, disciplinar a classe operária e perseguir os operários comunistas. Nos EUA, se lançou mão do macarthismo. Na Europa, do fascismo e do nazismo. No Brasil, surgiu o integralismo.

Todas essas doutrinas são as últimas linhas de defesa da propriedade privada, num quadro onde ela mesma desagrega a sociedade, acentuando seus elementos de barbárie. Por isso, são doutrinas que precisam legitimar o poder da elite social, justificando-o como um poder natural, inclusive místico.

Rerum Novarum foi escrita em 1891. Lenin no seu livro Imperialismo - fase superior do capitalismo (Editora Nova Palavra, p.28) estabelece a seguinte cronologia no desenvolvimento histórico do capitalismo: 

1. 1860 a 1870 momento culminante da fase do capitalismo de livre concorrência, ou fase liberal do sistema capitalista. 
2.  Crise de 1873 e aparecimento dos cartéis, fim da fase liberal do capitalismo. 
3.  Os cartéis passam a ser a base da economia. O capitalismo liberal desaparece de uma vez para sempre, dando lugar ao Imperialismo. 

Cartéis e trustes são associações patronais, que combinam preços e juntam em uma única agremiação vários ramos da indústria e, até, do capital financeiro. Portanto, o capitalismo transitava para uma época que Lenin chama de reação em toda a linha. Citando Lenin, explicitamente:


É de conhecimento geral o grau com que o capital monopolista aprofundou todas as contradições do capitalismo. Basta lembrar a carestia de vida e a opressão dos cartéis. Esse agravamento de contradições é a força motriz mais poderosa do período histórico inaugurado pela vitória do capital financeiro. Dito de outra forma, o imperialismo empurra a classe trabalhadora, inevitavelmente, à luta pela abolição do sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção. Isso obriga a burguesia a criar um método para deter a classe trabalhadora, um método que possa impedir a classe dos assalariados de tomar o poder, definitivamente, e de pôr fim ao Estado burguês e à apropriação privada da riqueza. Nesse caminho só resta à burguesia a opressão e a perseguição em toda linha:  cultural, étnica, de gênero, ideológica, estrutural e institucional.

A reedição de doutrinas totalitárias no momento de crise mais aguda do sistema capitalista, como ocorre  atualmente, não é uma solução nova para as contradições do sistema. Movimentos desse tipo sempre aparecem como última opção da burguesia para conter a classe trabalhadora. Nos próximos textos avaliaremos a evolução dessas mobilizações em algumas situações, no Século XX, nomeadamente, às vesperas da Segunda Grande Guerra Mundial. 

Antipetismo - versão brasileira do fascismo

Retomamos as origens teóricas do fascismo em virtude da discussão atual no Brasil, que tenta associar Bolsonaro e o movimento político ao qual ele pertence ao fascismo; o que não é incorreto, porém impreciso - e esta imprecisão traz confusão. Não entendermos a natureza do inimigo de classe, nos faz combater fantasmas. A necessidade de identificar corretamente o fascismo e associá-lo ao problema da perseguição política - método atual das instituições burguesas se relacionarem com as organizações do proletariado - é uma tarefa que ainda está por ser feita. A simples qualificação de fascista ou antifascista, não faz com que os movimentos políticos realmente tenham essa característica. Pretendemos demonstrar, a seguir, que uma verdadeira frente antifascista, no Brasil, passa necessariamente pela defesa do Partido dos Trabalhadores e, no mundo, pelo combate à perseguição política e defesa em escala global de todas as organizações, lideranças e militantes que defendem,  em qualquer grau, os direitos dos trabalhadores.   

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